Em São Paulo, a polícia adentrou determinado imóvel, justificando ao morador que precisava de passagem para perseguir um suposto criminoso em fuga.
O morador franqueou a passagem aos policiais, pelo que foi surpreendido com o ingresso dos policiais não apenas em seu terreno, mas em sua casa.
Acontece que os policiais suspeitavam que ali havia drogas a serem apreendidas, e de fato haviam, e elas o foram.
Entretanto, a operação foi anulada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do HC 674.139-SP, relatado pelo Min. Rogerio Schietti Cruz, na 6ª Turma, julgado por unanimidade em 15 de fevereiro de 2022.
O art. 5º, XI, da Constituição Federal, sobre o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, diz que a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.
O Supremo Tribunal Federal já definiu, em repercussão geral (Tema 280), que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo – a qualquer hora do dia, inclusive durante o período noturno – quando amparado em fundadas razões, devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem estar ocorrendo, no interior da casa, situação de flagrante delito (RE 603.616/RO, Rel. Ministro Gilmar Mendes, DJe 8/10/2010). No mesmo sentido, neste STJ: REsp 1.574.681/RS.
No caso em tela, havia informação anônima repassada pela Central de Operações da Polícia Militar – Copom sobre suposta ocorrência de tráfico de drogas, mas não havia nenhum registro concreto de prévia investigação para apurar a conformidade da notícia.
Também não foram realizadas diligências prévias, monitoramento ou campanas no local para averiguar a veracidade e a plausibilidade das informações recebidas anonimamente.
Não houve, da mesma forma, menção a qualquer atitude suspeita, exteriorizada em atos concretos, nem movimentação de pessoas em situação típica de comercialização de drogas.
Apenas havia o “feeling” dos policiais, o que não basta para justificar a violação legítima do domicílio de um cidadão.
Uma vez que o morador da casa fora induzido a erro ao permitir o ingresso dos policiais em sua casa, a operação se deu de maneira ilícita, o que impõe sua anulação e, também, torna imprestáveis as provas colhidas e tudo o que se deu em decorrência disso.
Critérios fixados pelo STJ
Por ocasião do julgamento do HC 598.051/SP (Rel. Ministro Rogerio Schietti, DJe 15/3/2021), a Sexta Turma do STJ, à unanimidade, propôs nova e criteriosa abordagem sobre o controle do alegado consentimento do morador para o ingresso em seu domicílio por agentes estatais.
Na ocasião, foram apresentadas as seguintes conclusões:
- Na hipótese de suspeita de crime em flagrante, exige- se, em termos de padrão probatório para ingresso no domicílio do suspeito sem mandado judicial, a existência de fundadas razões (justa causa), aferidas de modo objetivo e devidamente justificadas, de maneira a indicar que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito;
- O tráfico ilícito de entorpecentes, em que pese ser classificado como crime de natureza permanente, nem sempre autoriza a entrada sem mandado no domicílio onde supostamente se encontra a droga. Apenas será permitido o ingresso em situações de urgência, quando se concluir que do atraso decorrente da obtenção de mandado judicial se possa objetiva e concretamente inferir que a prova do crime (ou a própria droga) será destruída ou ocultada;
- O consentimento do morador, para validar o ingresso de agentes estatais em sua casa e a busca e apreensão de objetos relacionados ao crime, precisa ser voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou coação;
- A prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para o ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao Estado, e deve ser feita com declaração assinada pela pessoa que autorizou o ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas do ato. Em todo caso, a operação deve ser registrada em áudio-vídeo e preservada tal prova enquanto durar o processo;
- A violação a essas regras e condições legais e constitucionais para o ingresso no domicílio alheio resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a diligência.
Divergência entre versão da polícia e do morador
Segundo o STJ se, de um lado, deve-se, como regra, presumir a veracidade das declarações de qualquer servidor público, não se há de ignorar, por outro lado, que a notoriedade de frequentes eventos de abusos e desvios na condução de diligências policiais permite duvidar de certas situações em que estão em jogo direitos fundamentais do indivíduo.
Isso pode acontecer principalmente quando se notar indisfarçável desejo de se criar narrativa para justificar uma ação policial.
Essa relevante dúvida poderá, em certos casos concretos – avaliados por pessoa isenta e com base na experiência quotidiana do que ocorre nos centros urbanos – ser dirimida a favor do direito atingido (in dubio pro libertas), e não do Estado.
Na hipótese em análise, ainda que o acusado haja admitido a abertura do portão do imóvel para os agentes da lei, ressalvou que o fez apenas porque informado sobre a necessidade de perseguirem um suposto criminoso em fuga, e não para que fossem procuradas e apreendidas drogas.
Segundo o STJ, caberia aos agentes que atuam em nome do Estado demonstrar, de modo inequívoco, que o consentimento do morador foi livremente prestado, ou que, na espécie, havia em curso na residência uma clara situação de comércio espúrio de droga, a autorizar, pois, o ingresso domiciliar mesmo sem consentimento válido do morador.
Entretanto, não se demonstrou preocupação em documentar esse consentimento, quer por escrito, quer por testemunhas, quer, ainda e especialmente, por registro de áudio-vídeo.
O Min. Schietti destacou que, no Direito Civil, que envolve direitos patrimoniais disponíveis, em uma relação equilibrada entre particulares, a indução da parte adversa a erro acarreta a invalidade da sua manifestação por vício de vontade (art. 145, CC).
Portanto, com muito mais razão deve fazê-lo no Direito Penal, que trata de direitos indisponíveis do indivíduo diante do poderio do Estado, em relação manifestamente desigual.
A hermenêutica constitucional ensina que qualquer restrição a direitos fundamentais deve ser interpretada de maneira restritiva.
Assim, quanto ao consentimento do morador, na ausência de prova adequada em sentido diverso, prevalece a versão apresentada de que apenas abriu o portão para os policiais perseguirem um suposto autor de crime de roubo, e que, portanto, fora enganado pelos policiais.
Gravação audiovisual de operações policiais
O STJ destacou o recente julgamento pelo Supremo Tribunal Federal dos Embargos de Declaração na Medida Cautelar da ADPF 635 (“ADPF das Favelas”, finalizado em 3/2/2022).
Neste processo, o STF, em sua composição plena, e em consonância com o decidido pelo STJ, no já citado HC 598.051/SP, reconheceu a imprescindibilidade de tal forma de monitoração da atividade policial.
Também, determinou, entre outros, que “o Estado do Rio de Janeiro, no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, instale equipamentos de GPS e sistemas de gravação de áudio e vídeo nas viaturas policiais e nas fardas dos agentes de segurança, com o posterior armazenamento digital dos respectivos arquivos”.
Segundo o STJ, as regras de experiência e o senso comum, somadas às peculiaridades do caso concreto, não conferem verossimilhança à afirmação dos agentes policiais de que o paciente teria autorizado, livre e voluntariamente, o ingresso em seu próprio domicílio, de sorte a franquear àqueles a apreensão de drogas e, consequentemente, a formação de prova incriminatória em seu desfavor.
Partindo dessa premissa, isto é, de que a autorização foi obtida mediante indução do acusado a erro pelos policiais militares, não pode ser considerada válida a apreensão das drogas, porquanto viciada a manifestação volitiva do paciente. A descoberta a posteriori de uma situação de flagrante decorreu de ingresso ilícito na moradia do acusado, em violação a norma constitucional que consagra direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, o que torna imprestável, no caso concreto, a prova ilicitamente obtida e, por conseguinte, todos os atos dela decorrentes – relativa ao delito descrito no art. 33 da Lei n. 11.343/2006 -, porque apoiada exclusivamente nessa diligência policial.
Ressalta-se que, conquanto seja legítimo que os órgãos de persecução penal se empenhem em investigar, apurar e punir autores de crimes mais graves, os meios empregados devem, inevitavelmente, vincular-se aos limites e ao regramento das leis e da Constituição Federal. Afinal, é a licitude dos meios empregados pelo Estado que justificam o alcance dos fins perseguidos, em um processo penal sedimentado sobre bases republicanas e democráticas.
Informativo 725 do Superior Tribunal de Justiça