Anulação do julgamento do ator Alec Baldwin e o dever de descoberta

Home / Criminal / Anulação do julgamento do ator Alec Baldwin e o dever de descoberta
Compartilhar este conteúdo

Escrito por Mercelo Herval e publicado pelo Conjur.

 

Na última sexta-feira, 12 de julho, o ator norte-americano Alec Baldwin teve seu julgamento anulado por uma juíza do Novo México (EUA), após a conclusão de que provas relevantes à sua defesa teriam sido ocultadas pela Promotoria e pelos órgãos policiais.

Baldwin havia sido acusado de homicídio culposo, depois de ter disparado, em outubro de 2021, contra a diretora de fotografia Halyna Hutchins, no momento em que ambos participavam da gravação do filme Rust. Segundo Baldwin, ele desconhecia que a arma estivesse municiada com projéteis letais.

De acordo com a decisão que reconheceu a nulidade do processo, proferida pela juíza Mary Marlowe Sommer, de Santa Fé, Novo México, a ocultação de provas que poderiam ser relevantes à demonstração da inocência do ator constituiu grave violação ao dever de descoberta (duty of disclosure), e, portanto, a anulação seria a medida necessária para preservar a integridade e eficiência do sistema judicial [1].

O dever de descoberta, utilizado como principal fundamento para anular o processo movido contra Baldwin, refere-se à obrigação que recai sobre os órgãos de persecução do Estado (polícia e Ministério Público) de apresentarem todas as evidências reunidas em relação a determinado réu, mesmo que estas possam ser exculpatórias e, portanto, conduzam eventualmente à sua absolvição.

Com efeito, no julgamento do caso Brady v Maryland, em 1963, a Suprema Corte instituiu esta regra, conhecida como Brady Rule, estabelecendo que a acusação ― e, posteriormente, no julgamento do caso Kyles v Whitley, em 1995, estendendo esse dever também aos órgãos de polícia ― deveria compartilhar qualquer evidência favorável ao acusado, seja em relação à sua situação de inocência, seja em face de alguma circunstância atenuante da pena [2]. Esse material informativo, conhecido como Brady Material, deve ser apresentado independentemente de requerimento por parte da defesa, e a ausência no seu fornecimento importa na nulidade do processo ou do eventual acordo firmado.

Cenário local

No Brasil, o sistema de justiça criminal ainda não adotou, expressamente, idêntico instituto. Embora o Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei 8.906/94) assegure ao advogado o direito de examinar, em qualquer instituição responsável pela investigação, autos de flagrante ou de qualquer procedimento investigativo, findos ou em andamento (artigo 7º, XIV, EOAB) e de assistir a seus clientes durante a apuração das infrações penais (artigo 7º, XXI, idem) — o que é endossado pela Súmula Vinculante nº 14 do Supremo Tribunal Federal [3] —, em verdade não existe expressa obrigatoriedade de que informações que possam eventualmente conduzir à inocência do réu sejam compartilhadas com a defesa.

Ou seja: se, no curso da investigação, a polícia ou o Ministério Público se deparam com informações que possam levar à absolvição do réu — imaginemos uma testemunha que comparece à Delegacia e declara que tem informações relevantes que possam levar ao reconhecimento da inocência do réu —, nada obriga aos órgãos da persecução que façam a juntada desta informação ao procedimento investigativo (ou, no exemplo dado, que procedam à tomada de declarações da testemunha que compareceu à Delegacia).

Isso acontece porque a investigação estatal — notadamente o inquérito policial — se caracteriza como um procedimento administrativo considerado, pela legislação, doutrina e jurisprudência majoritária, como discricionário, inquisitivo e unilateral, o que significa dizer que ela representa a perspectiva de apenas uma das partes sobre o fato investigado, não havendo, ainda que possível, a obrigação de que outras perspectivas sobre os mesmos fatos sejam aceitas e desenvolvidas pelas autoridades responsáveis pela investigação.

Desequilíbrio

Tal cenário conduz a um imenso desequilíbrio entre as partes que atuam no processo, notadamente porque a atividade persecutória — que possui uma natureza pública, lembremos — acaba sendo construída, na maioria das vezes, a partir de uma visão única sobre determinadas hipóteses fáticas, cuja validade poderá vir a ser testada no curso de um processo criminal. Este fenômeno acaba gerando o que estudiosos da epistemologia denominam como “visão de túnel”, isto é, “um ‘compêndio de heurísticas comuns e falácias lógicas’ as quais estamos todos suscetíveis, que conduzem os atores do sistema de justiça criminal a focarem no suspeito, selecionarem e filtrarem as provas que construirão o caso para a condenação, ao mesmo tempo que ignoram ou suprimem as provas que apontam para longe da culpa” [4].

Além disso, em um país que vem adotando cada vez mais soluções negociadas para resolução dos casos que chegam ao sistema de justiça criminal — cite-se, apenas a título de exemplo, os institutos da transação penal, da colaboração premiada e, mais recentemente, do acordo de não persecução penal —, a ausência de transparência quanto às evidências coletadas sobre determinado suspeito gera uma imensa assimetria e, frequentemente, graves injustiças.

Não raras vezes, os réus ou investigados são compelidos, explícita ou implicitamente, a fazerem acordos sobre acusações baseadas apenas e tão somente em uma narrativa unilateral construída pelos órgãos de persecução estatal, sem que outras explicações acerca dos fatos que lhe são imputados tenham sido consideradas ou, mais grave ainda, quando existentes e de conhecimento das autoridades públicas, compartilhadas com sua defesa.

Desta forma, esvaziado o direito de descoberta de informações relevantes sobre a inocência do réu, resta a este somente a possibilidade de envidar esforços no sentido de coletar, sem a mesma estrutura de que dispõem os demais órgãos do Estado, indícios e provas que potencialmente contraponham as hipóteses narrativas sustentadas pela acusação. Tudo isso com uma agravante: da mesma forma que não se tem positivado o dever de descoberta, a investigação privada ou defensiva [5] igualmente não encontra amparo normativo — para além de um Provimento editado pelo Conselho Federal da OAB, qual seja, o Provimento nº 188/2018 —, o que enseja ainda maiores problemas ao acusado e sua defesa [6].

Propostas

Por tudo isso, se quisermos realmente consolidar um sistema de justiça criminal igualitário e democrático no Brasil, é primordial que pensemos, primeiro, na adoção expressa de uma regra de transparência probatória, segundo a qual todas as informações que eventualmente conduzam ao reconhecimento da inocência (ou da minoração de culpa) de um réu sejam acostadas aos autos investigativos por parte das autoridades estatais e necessariamente compartilhadas com a defesa.

Em segundo lugar, é necessário que também regulamentemos, vez por todas, a investigação defensiva, como forma de evitar inseguranças jurídicas e, pior, acusações de práticas espúrias por aqueles que desenvolvem atos de investigação privada. Afinal, sem uma regulamentação expressa, o(a) defensor(a) está sujeito a acusações de fraudes processuais ou coações no curso do processo pelo simples fato de intimar uma testemunha a comparecer ao seu escritório e proceder com a tomada de sua oitiva, por mais voluntário que tenha sido este comparecimento.

Nos Estados Unidos, apenas a título de exemplo, a American Bar Association ― associação de classe de advogados e estudantes de Direito dos Estados Unidos, equiparada à Ordem dos Advogados do Brasil ― preconiza, no seu Guia de Orientações para Defesa em Processos Criminais (Criminal Justice Standards for the Defense Function), especialmente em sua parte quatro, sobre os deveres éticos que norteiam a atividade investigativa por parte da defesa. Nesse sentido, dispõe-se que o advogado tem não apenas a possibilidade, mas, sim, o dever de investigar todos os casos sob seu patrocínio, a fim de determinar a (in)existência de base fática suficiente para sustentar as acusações. Esse dever, pontua o estatuto deontológico, não é limitado pela aparente força probatória das imputações e deve ser cumprido independentemente do desejo de seu cliente de admitir a culpa ou realizar acordos de barganha [7].

Ademais, preceitua o Guia que o advogado, tão logo assuma a causa, deve empreender esforços para explorar todos os caminhos que levem à descoberta de informações relevantes ao mérito da causa, baseado no melhor interesse do seu cliente, o que pode incluir investigações sobre o local do crime, perícias forenses, bem como depoimento de profissionais de áreas diversas. Outrossim, o diploma veda que o advogado se utilize de meios ilegais ou antiéticos para obtenção das evidências de que necessite, estabelecendo limites quanto ao contato e entrevista com vítimas e possíveis testemunhas, proscrevendo a utilização de qualquer abordagem intimidatória ou que provoque influências indevidas nos seus respectivos depoimentos.

Em nosso ordenamento jurídico, acostumamo-nos a importar institutos jurídicos existentes em outros países sem observar a efetiva realidade na qual eles se encontram inseridos. Não é possível pensar nos acordos processuais em âmbito penal — tal como presente nos Estados Unidos, notadamente com o plea bargaining — sem que, desde a fase investigativa, a defesa possa estar municiada senão das mesmas ferramentas (por limitações funcionais justificáveis [8]), mas, pelo menos, da mesma capacidade de coletar e apresentar provas e indícios que apresentem hipóteses explicativas diversas àquelas sustentadas pelos órgãos persecutórios do Estado.

Só assim conseguiremos, de fato, avançar rumo a um sistema de justiça criminal mais justo e paritário.

 


[1] WATCH Judge Mary Marlowe Sommer explain dismissing the case against Alec Baldwin | FULL DECISION. Direção: CTV News. YouTube: [s. n.], 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7GgOpkVHXKM&ab_channel=CTVNews. Acesso em: 15 jul. 2024.

[2] DE CASTRO, Ana Lara Camargo. Plea Bargain: resolução penal pactuada nos Estados Unidos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019, p. 116.

[3] Súmula Vinculante n. 14, STF: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.”

[4] Findley, Keith; Scott, Michael. “The Multiple Dimensions of Tunnel Vision In Criminal Cases”. Wisconsin Law Review. Wisconsin, n. 1023, p. 291-397. jun. 2006.

[5] Segundo Edson Luis Baldan, a investigação defensiva pode ser compreendida como “o complexo de atividades de natureza investigatória desenvolvido, em qualquer fase da persecução criminal, inclusive na antejudicial, pelo defensor, com ou sem assistência de consultor técnico, tendente à coleta de elementos objetivos, subjetivos e documentais de convicção, no escopo de construção de acervo probatório lícito que, no gozo da parcialidade constitucional deferida, empregará para pleno exercício da ampla defesa do imputado em contraponto à investigação ou acusação oficial” (BALDAN, Édson Luís. Investigação defensiva: o direito de se defender provando. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 15, n. 64, p. 253-273, jan./fev. 2007).

[6] SILVA, Franklyn Roger Alves. A investigação criminal direta pela defesa: instrumento de qualificação do debate probatório na relação processual penal. Revista Brasileira de Direito Processual Penal[S. l.], v. 6, n. 1, p. 41-80, 2020. DOI: 10.22197/rbdpp.v6i1.308. Disponível em: https://revista.ibraspp.com.br/RBDPP/article/view/308. Acesso em 15 de julho de 2024.

[7] “The duty to investigate is not terminated by factors such as the apparent force of the prosecution’s evidence, a client’s alleged admissions to others of facts suggesting guilt, a client’s expressed desire to plead guilty or that there should be no investigation, or statements to defense counsel supporting guilt.” (AMERICAN BAR ASSOCIATION (Estados Unidos). Criminal Justice Standards for the Defense Function: Part IV: investigation and preparation, [S. l.], 2017. Disponível em: https://www.americanbar.org/groups/criminal_justice/standards/DefenseFunctionFourthEdition/. Acesso em: 15 de julho de 2024.

[8] ROBERTO, Welton. A paridade de armas no processo penal: uma concepção do justo processo. Orientador: Anamaria Campos Torres. 2011. 331 f. Tese (Doutorado em em Direito) – Universidade Federal de Pernambuco, YouTube, 2024. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/10582. Acesso em: 15 jul. 2024.

×