A denúncia de Juliana Oliveira contra Otávio Mesquita

Análise jurídica do caso à luz da legislação penal brasileira.
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Por Dr. Juliano de Henrique Mello – OAB/SP n. 464.716

 


Introdução

 

A recente denúncia feita pela comediante Juliana Oliveira contra o apresentador Otávio Mesquita, por suposto estupro ocorrido em 2016 durante a gravação de um programa humorístico transmitido em rede nacional, reacendeu debates jurídicos e sociais a respeito da compreensão do crime de estupro no ordenamento penal brasileiro, dos prazos de representação e da viabilidade da persecução penal mesmo após anos do fato.

O presente artigo tem por objetivo esclarecer juridicamente os principais pontos envolvidos no caso, afastando análises passionais ou moralistas e concentrando-se na interpretação técnica da legislação penal e processual penal vigente à época dos fatos.

 


1. O conceito jurídico de estupro após a Lei n. 12.015/2009

 

Desde a reforma do Título VI do Código Penal, promovida pela Lei n. 12.015/2009, que alterou a redação do art. 213 para: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”, o crime de estupro passou a ter uma definição mais ampla.

Desse modo, a compreensão popular do estupro como sinônimo exclusivo de conjunção carnal forçada encontra-se superada. Toques íntimos não consentidos, beijos forçados ou outros atos libidinosos invasivos também se enquadram na figura típica do art. 213 do CP, desde que presentes os elementos da violência ou grave ameaça e a ausência de consentimento.

No caso em questão, Juliana Oliveira relata que foi tocada nas partes íntimas durante a gravação, contra sua vontade, e que tentou se desvencilhar, sendo segurada com força por Otávio Mesquita.

Há, portanto, elementos fáticos que podem, em tese, configurar o tipo penal descrito.

 


2. A questão da representação criminal e o prazo decadencial

 

À época dos fatos narrados (2016), o crime de estupro ainda era, em regra, de ação penal pública condicionada à representação da vítima, nos termos do art. 225 do Código Penal então vigente. Isso significa que, para que o Ministério Público pudesse promover a ação penal, era necessário que a vítima oferecesse representação formal contra o autor do fato, no prazo de 6 (seis) meses, contados da ciência da autoria.

Tal regra foi modificada pela Lei n. 13.718/2018, que transformou o estupro em crime de ação penal pública incondicionada, ou seja, que pode ser processado independentemente de representação da vítima. No entanto, por se tratar de norma de natureza processual penal com reflexos em direitos subjetivos, a mudança não retroage para os casos anteriores.

O ponto jurídico relevante, portanto, é: quando começa a contar o prazo de 6 meses para representação? O Código de Processo Penal estabelece, no art. 38, que esse prazo tem início a partir da data em que a vítima toma conhecimento da autoria do fato. No caso, isso teria ocorrido no momento da gravação, já que o autor era conhecido e o fato foi gravado.

Contudo, pode-se sustentar que a vítima não teve liberdade para agir à época, por se encontrar vinculada contratualmente à emissora, em posição hierárquica inferior, sendo eventualmente pressionada ou orientada a não representar.

Havendo prova ou indícios de que houve vício na manifestação de vontade, o prazo decadencial pode ser considerado como não iniciado naquela época, conforme interpretação da doutrina majoritária e parte da jurisprudência.

 


3. A relevância (ou irrelevância) do comportamento anterior da vítima

 

Tem circulado, em redes sociais, trechos de vídeos antigos em que Juliana Oliveira aparece brincando com outros colegas do programa “The Noite”, como Danilo Gentili. Esses vídeos têm sido utilizados por parte do público para desacreditar a denúncia contra Otávio Mesquita, sob o argumento de que seu comportamento seria “incompatível” com uma posterior alegação de abuso.

Do ponto de vista jurídico, esse raciocínio não se sustenta. Trata-se de uma falácia de generalização indevida, erro lógico comum que consiste em aplicar conclusões de um contexto a outro totalmente distinto. O consentimento é sempre contextual e específico. O fato de uma pessoa demonstrar bom humor ou aceitar brincadeiras em um ambiente não significa que consente com todos os comportamentos futuros ou de terceiros, especialmente se envolverem contato físico invasivo e não consentido.

Portanto, não se pode presumir consentimento com base em comportamentos passados, sob pena de ferir os princípios da dignidade da pessoa humana, da inviolabilidade corporal e da liberdade sexual.

 


4. O elemento subjetivo do tipo: dolo

 

No crime de estupro, é necessário comprovar que o agente praticou o ato com consciência da ausência de consentimento da vítima, ou seja, com dolo.

No presente caso, a narrativa da vítima aponta que ela tentou se afastar e foi impedida com o uso de força física. Tal conduta pode ser interpretada como indício de que o agente sabia da recusa e mesmo assim insistiu. Por outro lado, a defesa poderá argumentar que se tratava de uma brincadeira, que havia consentimento prévio e que o contexto humorístico justificaria a conduta.

Cabe à acusação demonstrar o dolo, sendo que a jurisprudência tende a admitir como suficiente a demonstração do conhecimento da ausência de consentimento, ainda que não haja violência explícita, cabendo à defesa comprovar que não houve ilicitude nem consciência da ausência de consentimento.

 


5. Responsabilidade da empresa e repercussões civis

 

Outro ponto que poderá ser levantado, caso a denúncia prospere, é a responsabilidade civil da emissora de televisão, enquanto empregadora, inclusive sob o enfoque da responsabilidade objetiva com base no risco da atividade, conforme jurisprudência trabalhista.

Se for comprovado que a funcionária comunicou o episódio à chefia e não recebeu acolhimento ou providência, a empresa poderá ser responsabilizada por omissão no dever de garantir um ambiente de trabalho seguro e pelo dano moral resultante do episódio.

Além disso, eventual comportamento omissivo poderá ser considerado como causa de impedimento para o oferecimento da representação na época, o que reforça a tese de que o prazo decadencial ainda não correu validamente.

 


Conclusão e convite à reflexão

 

O caso envolvendo Juliana Oliveira e Otávio Mesquita é juridicamente delicado e socialmente sensível. Mais do que emitir julgamentos apressados ou ceder à pressão das redes sociais, é necessário analisar os fatos sob a luz técnica da legislação penal.

Pontos centrais como a amplitude do conceito de estupro após 2009, o prazo de representação para fatos antigos, a validade da manifestação de vontade da vítima, e a avaliação do dolo são essenciais para compreender os desdobramentos jurídicos do caso.

Independentemente do desfecho, o episódio revela a importância de se discutir com clareza os limites do consentimento, o papel das empresas na proteção dos trabalhadores e a necessidade de segurança jurídica para todos os envolvidos.

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