Via Conjur.
Prestes a se aposentar após 39 anos de magistratura, e quase 50 como operadora do Direito, a ministra Assusete Magalhães, do Superior Tribunal de Justiça, tem uma mensagem a deixar: é preciso respeitar a cultura dos precedentes, sob pena de oferecer ao cidadão uma vã esperança que, ao fim e ao cabo, só servirá para impedir a pacificação social buscada no Poder Judiciário.
Esse é um mantra que a magistrada, como integrante da Comissão Gestora de Precedentes da corte, vem entoando há nove anos. Sob a liderança do saudoso ministro Paulo de Tarso Sanseverino, ela embarcou em uma missão de convencimento por meio do contato direto com servidores e magistrados das instâncias ordinárias, visando à valorização da jurisprudência que o STJ firma.
Aos que ainda não se convenceram, ela avisa: essa resistência não traz benefício para ninguém. “O que isso vai exigir é o processo chegar ao STJ, que vai, na primeira assentada, reformar a decisão. Com isso, cria-se uma vã ilusão para o jurisdicionado. Não há nada mais injusto do que duas pessoas que procuram o Poder Judiciário com a mesma postulação receberem respostas judiciais distintas no mesmo espaço de tempo e perante a mesma ordem jurídica. Como o jurisdicionado pode aceitar uma coisa dessas?”.
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Leia a seguir a íntegra da entrevista:
ConJur — A senhora integrou a Comissão Gestora de Precedentes desde a sua criação, e o trabalho desse grupo levou a mudanças muito positivas no tribunal. Como isso começou?
Assusete Magalhães — Antes mesmo do CPC de 2015, o STJ estava preocupado com o volume de recursos que chegava a este tribunal. Em setembro de 2014, o STJ começou a desenvolver um trabalho de inteligência voltado à gestão desses precedentes. Naquela ocasião, já tínhamos a previsão dos recursos repetitivos, então foi criada uma comissão especial de ministros. Ela foi integrada pelo saudoso ministro Paulo de Tarso Sanseverino, que a presidiu, representando a 2ª Seção, o ministro Rogério Schietti, representando a 3ª Seção, e por mim, representando a 1ª Seção. Desde então, o STJ vem trabalhando com os olhos voltados para a formação e a gestão de precedentes, incentivando, inclusive, os tribunais de segundo grau a assumir essa cultura. É preciso mudar o modo de ver o Poder Judiciário e o nosso sistema processual.
Essa comissão, então, começou um trabalho de convencimento dos tribunais e também dentro do próprio STJ, porque até então existia já o recurso repetitivo, criado em 2008, mas ainda era muito incipiente, andava pouco, era muito pouco utilizado. Foi aí que começamos a ter reuniões periódicas com todos os ministros de cada seção. E, antes da pandemia, nós visitamos os maiores tribunais do país exatamente para levar essa mensagem. A melhoria aqui no âmbito do STJ e do Poder Judiciário de modo geral dependia disso. Começamos a realizar muitos eventos e chamávamos a Brasília os desembargadores, os servidores que trabalhavam com admissibilidade de recursos especiais, para esse treinamento. E passamos a fazer o Encontro Nacional de Precedentes.
Certo é que esse trabalho trouxe resultados tão positivos que ele inspirou o CNJ a editar a Resolução 235/2016, determinando que todos os tribunais do Brasil, exceto o Supremo, deveriam criar uma comissão gestora de precedentes, tal como a nossa aqui, e deveriam criar também um Núcleo de Gerenciamento de Precedentes. A experiência daqui foi tão exitosa que ela se viu replicada em outros tribunais.
ConJur — É interessante que o convencimento tenha se destinado também aos servidores, não apenas aos magistrados, e hoje a resistência aos precedentes é menor. Os tribunais já estão afetando temas?
Assusete Magalhães — Tem melhorado um pouco, mas ainda falta. Hoje, mais de 70% dos recursos que são afetados e julgados nos repetitivos não decorrem de processos enviados pelos tribunais, mas do trabalho que é feito pela comissão. E qual é o trabalho? É identificação, com o uso da inteligência artificial, com o Sistema Athos, daqueles em que há matéria repetitiva ou um entendimento uniforme do STJ sobre o assunto. As informações assim disponibilizadas são encaminhadas ao presidente da Comissão Gestora de Precedentes, que, então, sugere ao relator a afetação. Isso tem aumentado de modo significativo a afetação e o julgamento de recursos repetitivos.
Uma outra estratégia que vem sendo adotada, e essa é só na 1ª Seção, é a realização de uma sessão mensal dedicada exclusivamente ao julgamento de recursos repetitivos. E criou-se recentemente um processo de imersão nos precedentes. Os magistrados e servidores que trabalham com gestão de precedentes vêm ao STJ e conhecem nossa estrutura. É um modo de incentivá-los a assimilar essa cultura de formação de precedentes.
Outra importante iniciativa da comissão foi a integração com outros projetos. Quero destacar um acordo de cooperação técnica que foi firmado em junho de 2020 com a Advocacia-Geral da União e teve resultados muito exitosos buscando a desjudicialização. Esse acordo conseguiu desjudicialiar 2,3 milhões de processos. Mais do que o STJ, isso beneficiou a sociedade. Na medida em que a AGU desiste de processos dessa natureza, porque nós julgamos os repetitivos aqui, o jurisdicionado tem a sua solução em um prazo mais curto.
ConJur — No fim das contas, o estabelecimento de uma cultura de precedentes mexe com o embate entre o livre convencimento motivado do juiz e a necessidade de uma jurisprudência íntegra e una. Como tem se resolvido esse dilema?
Assusete Magalhães — É preciso que haja uma mudança de cultura. É preciso que o Judiciário, em todas as suas instâncias, assimile essa cultura de formação de precedentes qualificados e procure implementá-la efetivamente, porque esse mesmo CPC que criou esse sistema de precedentes alargou a marcha processual e ampliou os prazos recursais, que passaram a ser computados em dias úteis. Ele ampliou o contraditório na fase recursal e passou a exigir impugnação. Se o Judiciário brasileiro não assimilar essa cultura, sem dúvida, haverá uma piora da situação.
Nós ainda temos magistrados, e são poucos, é verdade, mas ainda temos os que dizem: “Existe mesmo esse precedente qualificado, mas eu penso de modo diferente.” Isso não traz benefício para ninguém porque o que vai exigir é o processo chegar ao STJ, que vai, na primeira assentada, reformar a decisão. Com isso, cria-se uma vã ilusão para o jurisdicionado. Não há nada mais injusto do que duas pessoas que procuram o Poder Judiciário com a mesma postulação receberem respostas judiciais distintas no mesmo espaço de tempo e perante a mesma ordem jurídica. Como o jurisdicionado pode aceitar uma coisa dessas? A cultura dos precedentes, com a formação dos precedentes qualificados, de observância obrigatória, permite esse tratamento isonômico. Isso conduz a um Judiciário eficiente e traz pacificação social.
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