Via Thiago Henrique Boaventura.
Se você já estudou o CPC, certamente notou a importância dada pela “nova” legislação processual ao tema “precedentes”, numa evidente influência da common law no direito brasileiro. Hoje, o jurista se depara com inúmeros mecanismos de controle da segurança jurídica das decisões judiciais, conferindo ao Poder Judiciário uma certa uniformização interpretativa, embora, a toda evidência, o seu alcance integral seja improvável.
Cito, por exemplo, os incidentes de resolução de demandas repetitivas, as súmulas vinculantes e as decisões proferidas no controle de constitucionalidade (sobretudo, no concentrado, sem prejuízo da possível aderência do STF à tese de abstrativização do controle difuso).
Todos os instrumentos acima referenciados possuem em comum o efeito vinculante, capaz de tornar imperativo aquele precedente paradigma em relação às decisões judiciais proferidas nas instâncias inferiores, tornando a sua observância obrigatória.
Para eventuais desobediências, lança-se mão de recursos e, eventualmente, de outros instrumentos processuais, como a reclamação constitucional.
Contudo, como o direito serve às relações humanas e estas, com o desenvolver da sociedade, se modificam, os precedentes judiciais não podem se revestir de uma imutabilidade capaz de “precluir” a atividade interpretativa, ou obstar que a própria norma seja alterada em seu corpo legal.
Assim, surgem os instrumentos de relativização dos precedentes judiciais: overruling e overriding.
Overruling
O overruling, mais conhecido, é caracterizado pela alteração do entendimento de determinado Tribunal ou órgão julgador em relação à norma jurídica.
Aqui, a norma jurídica remanesce intacta em seu sentido literal, incidindo a mudança sobre a interpretação que era dada pelo Judiciário em relação a ela.
É importante que se estabeleça a seguinte premissa, quanto ao overruling: tendo em vista o dever de observância obrigatória do acórdão paradigma, evidentemente, apenas o órgão responsável pela sua edição, ainda, outro, desde que de “hierarquia” superior teria a atribuição para superá-lo.
Há, em todo caso, previsão expressa a respeito do instituto no art. 927, §§ 2º ao 4º, do CPC. Veja-se:
Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
[…]
§ 2º A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.
§ 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
§ 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
Overriding
Diametralmente oposta é a figura do overriding.
Aqui, a superação do precedente paradigma não decorrerá da sua revisão pelo próprio Judiciário, mas em razão da superveniência de um princípio ou regra legal que, em consequência, não afastará integralmente a orientação até então vigente, mas restringirá o seu alcance.
Em outras palavras, a tese remanesce a mesma, havendo, na verdade, uma restrição quanto à sua incidência.
Um grande exemplo de overriding nos remete ao direito coletivo. O art. 18 da Lei de Ação Civil Pública veda o adiantamento de honorários periciais. Assim, nas ações civis públicas movidas pelo Ministério Público, foi gerada grande controvérsia, pelo que o STJ pacificou o entendimento no sentido de aplicar, extensivamente, sua súmula 232, decidindo que, verificada a iniciativa do MP, seria dever da Fazenda Pública respectiva o custeio dos honorários periciais (REsp nº 1.253.844/SC).
A ratio decidendi existente por trás desse precedente está relacionada ao receio de que, permitindo a aplicação literal do art. 18 da LACP, houvesse, por consequência, um desestímulo na atuação dos peritos, inviabilizando a prestação jurisdicional, ante a inexistência de antecipação dos seus honorários e o risco de ingressarem na “fila de precatórios” para recebê-los, anos após.
Todavia, embora alguma doutrina se posicione no sentido contrário, prevalece – inclusive com a chancela do STF, ainda que em decisão monocrática (vide ACO 1560/MS) – a ideia de que o entendimento do STJ foi superado pela regra introduzida no art. 91 do CPC, que determina a capacidade do Ministério Público para, havendo previsão orçamentária, custear os honorários periciais referentes às perícias que solicitar.
Trata-se de uma inequívoca situação de overriding porque a superação do precedente do STJ não foi total, mas parcial. Como visto, a capacidade do MP subordina-se à existência de previsão orçamentária. Assim, não se verificando a disponibilidade financeira, subsistirá a lacuna legal quanto ao responsável pelo custeio da diligência. Nessa hipótese específica, remanescerá a aplicação extensiva da súmula 232, cabendo à Fazenda Pública ao qual o Parquet estiver vinculado o dever de custeio.
Distinguishing
É relevante, ademais, deixar clara a distinção do distinguishing em relação aos demais institutos estudados.
Embora parcela da doutrina qualifique-o como mais um instrumento de relativização da eficácia dos precedentes, é recomendável classificá-lo como um mecanismo paralelo.
É que, no distinguishing, não há falar em superação do precedente, mas simplesmente na verificação da inaplicabilidade daquela decisão judicial à situação posta à apreciação.
Em síntese, o objeto da decisão paradigmática é absolutamente distinto daquele tratado na segunda ação, razão pela qual deve ser afastada, por razões lógicas, a sua incidência.
Conclusão
Assim, revisando, é possível estabelecer a diferença entre os institutos abordados, que, em síntese, se apresentam da seguinte maneira:
- Overruling – é a mudança de entendimento do Tribunal a respeito da mesma questão;
- Overriding – é a superação parcial de um precedente em razão da superveniência de uma nova regra ou princípio legal;
- Distinguishing – é a inaplicação de um precedente, justificada pela distinção entre o objeto tratado nele e aquele enfrentado na segunda ação.